Em entrevista exclusiva à ACTIVA, Teresa Paiva, neurologista e a maior especialista em sono no nosso país, explica por que dormir bem é essencial à nossa saúde, física e mental.
Em qualquer entrevista que faça, pergunto sempre às minhas colegas de redação o que gostariam de saber sobre essa pessoa ou sobre o tema que vou falar. Nunca recebi tanto feedback com outro assunto como este, o que só sublinha a sua importância, ainda para mais na altura difícil que todos estamos a passar, em que a nossa saúde, a dos nossos familiares, a guerra na Ucrânia e os problemas económicos ameaçam tirar-nos o tão precioso sono.
O que é um ‘sono reparador’?
O sono repara o que está estragado, deita fora o ‘lixo’ acumulado e prepara-nos para sobreviver em todos os sentidos. O sono é reparador porque vai equilibrar as funções essenciais da vigília: as funções metabólicas (o equilíbrio das gorduras, dos hidratos de carbono, das proteínas), a par de todo o equilíbrio hormonal, pois há uma série de hormonas que são produzidas à noite e que efetivamente vão funcionar de uma forma muito ativa neste equilíbrio. Depois temos ainda a preparação para a defesa relativamente ao exterior, toda a parte da imunidade. E todos os outros sistemas – olhos, pele, coração, intestino – são reparados e têm funções diferentes durante a noite.
O que é ‘deitar o lixo fora’?
Sabe-se atualmente que durante o sono, à noite, em termos cerebrais, são eliminadas moléculas que são nocivas e memórias que não prestam, preparando-nos assim para sobreviver, aumentando e melhorando a nossa aprendizagem, organizando e melhorando a memória, aumentando as soluções criativas que são necessárias à sobrevivência. O sono tem uma enorme função do ponto de vista emocional e intelectual.
Então o adágio ‘quem muito dorme pouco aprende’ não faz sentido…
Se dormir pouco é que não aprende. Einstein dormia 10h, Beethoven e Darwin, 8h. Também os atletas de alta competição têm de dormir bem, o Ronaldo de certeza que o faz. Quando isso não acontece, nós, especialistas, temos de os ajudar, sem remédios, preferencialmente. Uma pessoa que trabalhe muito, um CEO de uma empresa ou uma mãe de família, têm de pensar que são como atletas de alta competição e ter muito cuidado com o sono.
Quantas horas devemos dormir?
A maior parte da população adulta precisa de dormir entre 7-9h. Há quem precise de menos, os short sleepers, e quem precise de mais, os long sleepers. Mas estes constituem cerca de 5% em cada lado do espectro, isto é, cerca de 90% das pessoas precisam de dormir 7-9h. Mas um adolescente precisa de dormir mais, 8 a 10h, e as crianças mais ainda. Esta noção que podemos dormir pouco é um verdadeiro disparate, tendo explicado todas as funções do sono, se quiserem ficar dementes, façam favor, se quiserem ter um AVC ou enfarte, ou um cancro, façam favor…
“Se tem um problema de sono que se prolonga por mais de três meses, não é passageiro, vai precisar de ajuda.”
Ultimamente, já se vê muitos estudos a sublinhar a importância do sono, mas ainda há quem pense que é uma perda de tempo, e tempo é dinheiro.
Foram feitos vários estudos sobre o sono a nível mundial, sobretudo nos países mais ricos – EUA, Alemanha, Japão, Itália – e chegou-se à conclusão de que os custos de dormir pouco equivalem a uma perda em média de 3% do PIB… são valores espantosos que revelam custos enormes que os países também sofrem se a sua população ativa não dorme o suficiente. Eu costumo dizer que o sono é o meu superpoder, na minha idade durmo bem, sem remédios e estou ativa física e intelectualmente.
E é absolutamente crucial para a nossa sobrevivência, como os alimentos o são, não é?
Exatamente, até morremos mais depressa se não dormirmos, pelo menos é o que acontece com os animais, nunca se experimentou com humanos, como é óbvio, mas sabe-se que os animais morrem mais depressa sem dormir do que sem comer.
Uma noite descansada é quando dormimos as tais 7-9h seguidas?
Não há ninguém – desde um feto na barriga da mãe, um bebé ou uma pessoa adulta – que durma bem sem acordar por períodos curtíssimos e isso é normal. Atualmente, consideram-se quatro fases do sono com uma quinta que é quando acordamos. No fundo, temos três fases Não REM e uma de sono REM (Rapid Eye Movement). Começa-se pela fase 1 em que é sono mais leve e depois a 2 e 3, que são mais profundas. A seguir temos a REM, que se caracteriza por termos os olhos fechados mas as moverem-se de um lado para o outro. Vê-se perfeitamente nos cães ou gatos, por exemplo, quando eles estão a dormir e os seus olhos a mexer de um lado para o outro, e dão pequenos esticões no membros. É nesta fase REM que temos mais sonhos, mais emocionais, com histórias, interações com terceiros, embora seja tudo incongruente, se não são incongruentes não são sonhos, aliás a própria natureza do sono é ser uma coisa disparatada. Quando saímos da fase REM, temos novamente a fase 2 do sono, um sono reparador, e depois a fase 3, onde o sono ainda é mais profundo. É nestas fases do sono que são produzidas as hormonas que falámos anteriormente e são absolutamente essenciais para a memória e cognição porque começam a reorganizar as memórias. É tudo uma sequência muito bonita e lógica de uma viagem que devemos fazer durante a noite com passos sucessivos.
Então e aquelas pessoas que se queixam de que acordam muitas vezes durante a noite?
Têm de ver por que acordam. Se voltam rapidamente a adormecer, isso é normal, como disse, mas se ficam acordadas muito tempo convém fazer um registo de sono para se ver por que isso acontece. Uma pessoa pode acordar porque tem apneias do sono, porque dá muitos esticões com as pernas e braços, porque tem arritmias cardíacas, frio ou calor, ou vive numa zona com muito ruído… são muito variadas as causas. É necessário fazer uma história clínica muito detalhada, eu costumo levar entre 1h a 2h a fazê-la.
Quais são os fatores mais perturbadores do sono?
Temos os fatores internos, que são as doenças, desde um cancro, um enfarte, a covid-19, em geral as infecções perturbam os mecanismos do sono, assim como alguns tratamentos. Há também a salientar as preocupações económicas que fazem as pessoas passarem noites em claro. Há imensa gente que passa a noite inteira a matutar, a pensar nos seus problemas, ou no que vai fazer no dia seguinte e tentar organizar-se; há quem se levante de noite para ir passar a ferro ou trabalhar no computador. Tudo isto acontece e nada disto é bom. Depois temos os fatores externos: a luz, o barulho, o ter frio ou calor, o vizinho barulhento, o marido ou a mulher que ressona… Para as mães e pais, os grandes perturbadores do sono são os filhos. E deixe-me dizer que um filho saudável dorme sempre bem. Se isso não acontece é porque os pais fizeram alguns disparates.
Quem procura mais o seu consultório?
Quem tem insónias, é o problema dominante, quem não consegue adormecer, quem dorme pouco, quem tem pernas inquietas… mas as apneias vêm logo a seguir. Depois há aquelas coisas esquisitas que as pessoas fazem durante o sono, como cair da cama, gritar, sonhar muito, bater no parceiro… são relativamente frequentes e não são fáceis de resolver.
E os problemas são iguais entre homens e mulheres?
Não, há problemas diferentes entre os sexos. O sono é diferente nos homens e nas mulheres. As mulheres têm mais insónias, os homens mais apneia, sonambulismo, transtorno comportamental do sono REM do que as mulheres. E nas mulheres muitas vezes os problemas do sono começam com o nascimento dos filhos, nos homens o problema é mais o trabalho.
“Os problemas do sono não são iguais entre os sexos, as mulheres sofrem mais de insónia e os homens de apneia.”
Falou há pouco de crianças, também vão à sua consulta com problemas de sono?
Sim, claro, as crianças também podem ter sono agitado, não dormir, suspeita de apneia. Há cada vez mais crianças que dormem pouco e mal. Chegámos ao ponto em que é estranho uma criança dormir as horas que é suposto, e os pais acham que a criança está doente, está tudo ao contrário.
Se calhar são os pais que dormem pouco…
Então são eles que estão mal, a criança dorme o que for preciso. Embora haja crianças que podem ter hipersonias e doenças graves, como narcolepsia, etc., não estou a falar disso, o dormir demais pode ser por outras coisas mas não é comum. Lembro-me de um casal jovem em que a rapariga dizia que o namorado dormia de mais, fomos ver e ela é que dormia de menos.
E porque será que tantas crianças dormem pouco?
Muitas vezes é porque estão sobrecarregadas. Há crianças que além da escola ainda vão para as atividades e chegam a casa tardíssimo. Se somar o tempo da escola às horas nas atividades extracurriculares, há miúdos que trabalham 40h, 60h, até 70h por semana. É uma brutalidade. Quando o horário de um adulto é de 35h, como é que uma criança pode trabalhar 60-70h? ‘Ah, eles estão na brincadeira’, dizem, mas não é verdade. Não estou a culpar os pais, com a vida que muitos pais levam é difícil encontrar uma solução. Mas convencer-se de que as crianças têm de aprender tudo e mais alguma coisa, e andar em mil e uma atividades, é errado, estraga-lhes a memória, quando chegam à universidade ou estão deprimidos ou em burn out.
Mas há casos em que os pais se esforçam em pô-las a dormir cedo, mas elas não dormem…
E depois vão ao psiquiatra e o diagnóstico é hiperatividade. Agora é tudo hiperativo e tomam medicamentos… não estou a dizer que algumas não precisem, mas há muitas crianças com hiperatividade e agressividade por falta de sono, logo, se as puserem a dormir bem, ficarão bem, não é preciso encharcá-las em remédios.
Diz que os pobres dormem pior que os ricos…
Sim, é verdade, há estudos internacionais que mostram como as pessoas das classes sociais mais baixas dormem pior, têm mais doenças e muitas vezes vivem em ambientes mais agressivos, onde há mais violência exterior, e o ambiente nas habitações é pouco agradável. Durante os meses de confinamento da covid-19, por exemplo, quem conseguiu ir para o campo, ou tem casa com jardim, esteve muito melhor do que quem mora em andares a ouvir o barulho dos vizinhos. Se dorme menos, a esperança de vida também é menor.
A covid-19 veio aumentar os problemas de sono?
Sim, mas não muito mais, houve uma deterioração do sono, claro, mas no nosso país já se dorme pouco e mal há muito tempo.
Agora é difícil não andarmos preocupados, como podemos lidar com isso sem perturbar o sono?
Experimentem ter um caderno de preocupações. Escrever é muito catártico, devem escrever o que as preocupa para limparem a cabeça e a seguir irem dormir. Podem sentir algum alívio.
As perturbações do sono aumentam com a idade?
Sim, isso é um facto, mas não é a regra nem uma inevitabilidade. Nós todos temos mais doenças com a idade. Assim como ficamos com rugas na cara ou cabelos brancos, os órgãos também começam a ter problemas. O sistema sono-vigília envelhece, o cérebro também, há perdas neuronais, a amplitude do ritmo da melatonina é menor nos velhos..
As mulheres têm mais problemas na menopausa?
Os homens são simples: nascem, chegam à puberdade e ficam sempre iguais da puberdade para a frente. Só começam a complicar quando ficam mais velhos. Com as mulheres não é assim. Nascemos, depois temos a puberdade, e durante anos, todos os meses, há a menstruação e a ovulação. Depois há a gravidez, o parto e o pós-parto, e ainda a menopausa. As mulheres são mais complicadas do ponto de vista biológico e essas diferenças fazem com que possam desenvolver insónias na menstruação, na gravidez, no puerpério e na menopausa.
Qual é a taxa de sucesso dos tratamentos?
Depende, na maior parte é de 90%, se forem bem tratadas. Mas há algumas que são difíceis. Eu, pessoalmente, tenho dificuldade em tratar aquelas pessoas com síndrome de atraso das fases do sono, que vão para a cama às 8h da manhã.
E quando é que se deve tomar comprimidos?
Eu, por hábito, não dou comprimidos para dormir, os clássicos hipnóticos. Quer dizer, se a pessoa tem uma depressão, tem de a tratar, mas o essencial das insónias é saber se tem causas orgânicas ou comportamentais. Muitas vezes as causas são várias. Sou de opinião de que só se deve prescrever criteriosamente.
Mas o uso de hipnóticos em Portugal é elevado…
E causam adição, quanto mais se toma menos se dorme, o que é perigosíssimo, olhe os casos de Michael Jackson e de Elvis Presley. Michael Jackson precisava de doses cada vez maiores do anestésico propofol para dormir, o que o levou à morte. Elvis Presley também morreu porque tomou comprimidos para dormir, cada vez mais e mais fortes. Há um estudo americano, feito ao longo de muitos anos e com milhares de pessoas, que prova que, quem tem mais de 65 anos e tenha uso prolongado de hipnóticos, tem maior probabilidade de ter cancro e morrer mais cedo. Quando vemos estas coisas, percebemos que temos de tirar os hipnóticos aos doentes.
Há também quem compre melatonina e acha que por ser natural não faz mal…
Natural é a pera que se apanha no pomar ou o tomate da horta… Nada que esteja num comprimido é natural, foi modificado quimicamente. A melatonina não se deve tomar porque produzimo-la naturalmente, embora haja excepções, claro, como as pessoas que têm doenças de desenvolvimento (Trissomia XXI), ou os idosos… ou aquelas que passam a noite a apanhar a luz do telemóvel, essas não produzem melatonina. Eu sou velha e produzo melatonina.
“As perturbações do sono não só podem dar origem a depressões como agravar estados depressivos.”
Mas continua muito ativa e o seu projeto já está concluído?
Sim, um hotel do sono, Sleep & Nature Hotel, em Lavre. É um projeto de contacto com a Natureza e com uma vertente terapêutica para monitorizar e curar as perturbações do sono.
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Texto originalmente publicado em www.activa.sapo.pt